Marlene França
Recrutada de uma feira na Bahia, onde vendia frutas, Marlene França chegou às telas do cinema com 12 para 13 anos e dele nunca mais saiu. O filme de estréia foi o episódio `Ana`, dirigido pelo grande Alex Viany para o longa-metragem produzido por Jori Ivens, ´Rosa dos Ventos´, uma produção alemã.
Apesar da condição adversa, Marlene França é uma dos dez filhos de uma família de retirantes nordestinos, a garota apaixonada pelo cinema sempre sonhou com as telas, “eu queria sair daquele sertão e ir para o sul, para ganhar o sul, para virar estrela. Ser como Eliana, Adelaide Chiozzo, Fada Santoro – de quem eu gosto até hoje. Queria ser estrela de Hollywood”.
Marlene França construiu uma importante e premiada trajetória de atriz, com filmes no currículo dirigidos por nomes como Walter Hugo Khouri, Milton Amaral, Jorge Ileli, Carlos Coimbra, Luis Sérgio Person, Fernando Campos, Ozualdo Candeias e Luiz Paulino dos Santos. Belíssima, atuou também em pornochanchadas, as comédias eróticas que lotavam os cinemas, e entre elas sob a direção de um dos maiores nomes do gênero, Fauzi Mansur. E, claro, foi dirigida por aqueles a quem considera seus verdadeiros mestres: Alex Viany e Roberto Santos.
Gentil e calorosa, Marlene França conversou com o Mulheres pelo telefone de sua casa em São Paulo. Além da carreira de atriz, atuou também atrás das telas como continuísta em vários filmes e diretora de três premiadíssimos curtas: `Frei Tito´, `Mulheres da Terra´ e `Meninos de Rua´, “Eu e o Sílvio Tendler somos os únicos documentaristas a receber três prêmios Margarida de Prata consecutivos”. Marlene França conta sobre sua paixão pelo cinema e seu encontro com Alex Viany, sobre a história de sua família, a vinda para São Paulo, os trabalhos na televisão e no teatro, sobre os seus filmes como atriz e como diretora. Homenageia os diretores Alex Viany, Roberto Santos, Luis Sérgio Person e Ozualdo Candeias, a atriz e cantora Vanja Orico, a atriz, produtora e diretora Carmen Santos, e a pesquisadora Maria do Rosário Caetano.
Mulheres: Você chegou ao cinema ainda adolescente pelas mãos do grande Alex Viany, no filme ‘ Rosa dos Ventos´ (1957). Como foi essa história?
Marlene França: Eu estava, como sempre, viajando pelo Brasil com minha família. Éramos uma família de retirantes e meu pai estava sempre procurando emprego, já que vínhamos fugindo da seca do sertão. Nesse episódio, morava em Feira de Santana, e ficava nas feiras vendendo frutas, banana. E eu vi aquela movimentação de gente diferente, do sul. Aí o Ary Fernandes, diretor de produção do filme, estava por ali procurando figurantes. Eu tinha 12 para 13 anos. Quando eu o ouvi perguntando para as pessoas se elas queriam participar eu olhei para a cara dele e perguntei se era mesmo cinema de verdade, tipo Eliana e Oscarito. Ele então me olhou, me perguntou se eu sabia sobre cinema e eu desfiei para ele todos os filmes da Atlântida. Ele então me chamou e foi comigo pedir autorização para o meu pai, que trabalhava ali perto como alfaiate. E aí nós todos fomos contratados, a família inteira.
Mulheres: Sua família é muito grande?
Marlene França: Sim, somos dez irmãos, mais meu pai e minha mãe?
Mulheres: Qual o nome de seus pais?
Marlene França: Manoel França e Maria Aparecida França. E então eles nos ofereceram um dinheirão. Imagina, para nós, nordestinos paus-de-arara, era um dinheiro fora de série.
Mulheres: `Rosa dos Ventos´, na verdade, é uma produção estrangeira, não é isso. O episódio do Alex Viany é o `Ana´.
Marlene França: Era uma produção do diretor Jori Ivens. O roteiro do episódio é uma história do Jorge Amado, que assinou o roteiro junto com o Alex e também com Trigueirinho Neto, que viria a ser um grande amigo.
Mulheres: De cara, uma turma da pesada. E como foi o seu encontro com o Alex Viany?
Marlene França: Foi muito interessante. Ele ficou muito impressionado comigo. Porque eu era apaixonada por cinema. Na época, eu vendia bananas, marmita, e deixava de comprar coisas para mim para poder ir ao cinema. Ia às matinês e adorava, conhecia tudo de cinema americano e da Atlântida. E lia também todas as revistas da época, a Cinelândia, a Revista Carioca, todas.
Mulheres: E você, que tinha essa relação de espectadora apaixonada, tinha imaginado que algum dia chegaria a ser uma atriz premiada e importante no cinema brasileiro?
Marlene França: Eu sempre quis. Não só ser atriz, mas ser uma estrela de cinema. Mas você sabe como é, naquela época, gente pobre não nasceu para ser artista. No máximo, faria um curso de datilografia e se muito, poderia vir a ser professora. Mas aí, quando eu fui falar com o Alex, eu fazia perguntas sobre cinema para ele que o deixava desconcertado. E falávamos sobre os filmes da Metro, Gene Kelly, e outros. E ele foi aumentando a minha personagem. Até que um dia eu reclamei com ele sobre o fato de minha personagem não ter sequer uma fala. Ele deu muita risada e argumentou que muita gente em São Paulo e no Rio de Janeiro gostaria de estar no meu lugar. Mas aí ele me disse que ia me dar algumas falas para ver como me sairia.
Mulheres: E você?
Marlene França: Fiquei numa alegria só. Era a realização de um sonho. Como já disse, eu queria sair daquele sertão e ir para o sul, para ganhar o sul, para virar estrela. Ser como Eliana, Adelaide Chiozzo, Fada Santoro – de quem eu gosto até hoje. Queria ser estrela de Hollywood.
Mulheres: Como foram as filmagens de ´Rosa dos Ventos´?
Marlene França: Foi muito difícil, só vendo para crer. Tínhamos que rodar 500km, indo de Salvador até Canudos, pegando estrada de terra. A câmera tinha que ser enrolada em um lençol. O filme foi com Vanja Orico, maravilhosa, que veio da Europa com dinheiro do bolso dela especialmente para fazer o filme. E tinha o Jori Ivens, que anos mais tarde fui conhecer como documentarista.
Mulheres: Já li em registros que você recebeu prêmio em Berlim como atriz Coadjuvante, é isso mesmo?.
Marlene França: Não. Disseram-me, acho que foi o Alex, que eu recebi o prêmio de revelação como atriz coadjuvante, mas foi na Chekoslovakia, em um festival de filmes de países socialistas.
Mulheres: E como foi sua vida depois disso?
Marlene França: Bom, aí foi uma tristeza, voltar para aquela vida de sempre. Meu pai era uma pessoa muito inteligente, ele acompanhava a movimentação das estações e dos tempos de colheita. Assim, se era época de colheita de algodão ou de café nós íamos para a região, ele fazia ternos para os fazendeiros e o resto da família trabalhava na plantação, colhendo café, algodão. Meu marido me disse uma vez que meu pai era um tipo de ‘hippie. A minha vida era isso, e hoje, vendo de longe, dá para ver que eu só poderia mesmo ser documentarista. Apesar das dificuldades eu tenho muito amor às minhas origens, nunca deixei de ser uma mulher do povo. O que era um pouco difícil era a questão da escola, já que vivia mudando de cidade. Mas com o dinheiro que a família ganhou nas filmagens nós viemos para São Paulo e eu fui terminar os estudos.
Estudar para mim sempre foi prioridade. Eu sabia que tinha que estudar, estava na alma. Eu sabia que tinha que perseguir o saber, que conhecimento era tudo.
Mulheres: E como ficou o lado da atriz?
Marlene França: Bom, todo mundo ficava falando que eu tinha que continuar a carreira, que eu tinha talento, mas eu ficava relutante, tinha que trabalhar. Aí eu consegui uma bolsa para ir estudar na União Soviética.
Mulheres: É mesmo? Eu não sabia disso?
Marlene França: Pois é, mas eu acabei não indo. Você sabe como é, naquela época era tudo muito diferente e eu era muito nova, tinha 16 anos, era arrimo de família, pai cardíaco. E era aquela coisa, moça não sai de casa para atravessar o mundo. Mas foi um acontecimento muito importante. Eu era filiada ao Partidão. Eu era apaixonada pelo cinema russo, vi `Quando Voam as Cegonhas´ (Mikhail Kalatozov, 1958) cinco vezes. Mais tarde, o Paulo Emílio Salles Gomes me indicou o filme ‘Kanal´ (Andrzej Wajda, 1956) que mudou a minha vida.
Mas quando se é muito jovem, é difícil ficar lendo ´O Capital´, ficar lendo Marx, toda essa complexidade. Eu gostava, mas gostava também de ouvir Bossa Nova, de me divertir, ser alegre.
O Alex ficava insistindo e queria que eu fizesse um curso de interpretação no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que era gratuito. E eu acabei chegando lá pelas mãos dele e do Lima Barreto. Era um curso de três anos e lá eu conheci Paulo Emílio Salles Gomes, Walter Hugo Khouri e Roberto Santos, meu segundo mestre. Ele e o Alex foram as maiores referências da minha vida. O curso era dirigido por Plínio Santos. Foram todas essas pessoas que me ajudaram, mas hoje sei que o Alex, de certa forma, pressionava aquelas pessoas para poder me ajudar, já que eu era muito nova na época, e não podia entrar menor de idade. Tive também aulas de leitura e impostação de voz com Maria José de Carvalho. Toda a minha geração passou pelas mãos dessa mulher.
Então eu estudava e trabalhava em um escritório do Ruy Santos (fotógrafo e documentarista). Foi também o Alex que arranjou esse trabalho para mim. Era uma espécie de montadora, ficava colando fita e também atendendo ao telefone.
Mulheres: Interessante que já no início de sua carreira você acabou transitando pelos dois lados, à frente e atrás das câmeras, que foi o que aconteceu durante toda a sua trajetória.
Marlene França: Pois é. Desde o início eu me interessei por esse outro lado. E acabei atuando como continuísta em vários filmes até desaguar na direção.
Mulheres: Eu quero chegar a seus filmes como diretora, mas vamos continuar falando sobre a carreira da atriz. Seu próximo filme foi com o Walter Hugo Khouri, o ´Fronteiras do Inferno´ (1958).
Marlene França: O Khouri dava aula para mim no curso. Foi uma participação pequena, mas que abriu caminho para eu ser continuísta em ‘A Garganta do Diabo´ (1919), e daí não parei mais.
Mulheres: Com o seu terceiro filme, `Jeca Tatu´(1960), vem a consagração. Como foi o encontro com o Mazzaropi?
Marlene França: O Mazzaropi era um ídolo na época, é como se fosse o Renato Aragão hoje, conhecê-lo foi realmente uma consagração. As filmagens foram na Vera Cruz e lá eu vi Odete Lara, que ao encontrar achei que era uma miragem, como também o José Mauro de Vasconcelos. Na época, eu conhecia mais o pessoal da Atlântida, o da Vera Cruz vinha do teatro, gente da maior importância. E eu lá, como estrelinha, filha do Jeca Tatu.
Mulheres: E você se lembra como se sentia na época? Que enfim tinha chegado lá?
Marlene França: Na verdade, eu achava que ainda não tinha chegado lá, não era o que eu queria. Aliás, até hoje acho que ainda não cheguei lá.
Mulheres: O filme foi dirigido por Milton Amaral. Vocês se casaram nessa época?
Marlene França: Não, nós já éramos casados. Nos casamos por causa do filme do Khouri, o ‘Garganta do Diabo´. Ele era rodado do lado de lá das Cataratas do Iguaçu. Eu não podia viajar, mas como estava noiva acabamos nos casando por isso.
Mulheres: Como você o conheceu?
Marlene França: Eu conheci o Milton no MAM, ele tinha sido aluno de um curso antes do meu. Não ficamos casados durante muito tempo. O Milton era um bom diretor, um bom roteirista. Ele teve uma carreira bonita depois que separou de mim. Depois trabalhei com ele já como estrela em ´O Cabeleira´ (1963), um excelente roteiro dirigido por ele. Eu gostaria de resgatar a memória dele. O Máximo Barros gostava muito do Milton, ele foi um excelente professor de cinema na FAAP.
Mulheres: No próximo filme, ‘A Morte Comanda o Cangaço´ (1961), você é dirigida por Carlos Coimbra.
Marlene França: Eu me lembro muito do Coimbra, tenho a maior admiração por ele. ´A Morte Comanda o Cangaço´ foi um filme difícil de fazer, foi na transição do preto e branco para o colorido. Fomos filmar no Quixadá, no Ceará. Nesse filme eu fui assistente de direção e continuísta. Eu cometi erros enormes, a gente não via o copião na hora, só vinte dias depois, quando ele vinha do laboratório Rex. Foi aí que eu descobri o tamanho da minha imperfeição e que eu não sabia nada. Tem uma cena em que o Milton Ribeiro, que fazia o Lampião, entra em uma cena com uma camisa azul e volta com uma amarela. Meu Deus, eu não sabia nada. Fora as broncas que eu devo ter recebido.
Mulheres: Você sempre foi uma atriz essencialmente cinematográfica, não é? Mesmo tendo feito cinema e televisão.
Marlene França: Essencialmente cinematográfica. Sempre tive paixão pelo cinema, sempre fui dedicada, pronta para tudo, pau para toda obra. Segurava refletor, rebatedor, o que precisasse.
Mulheres: E a carreira no teatro?
Marlene França: Fiz uma carreira bonita no teatro, fiz textos maravilhosos. Teatro é uma grande escola, hoje eu reconheço isso. Se fosse para começar hoje eu faria teatro sem parar, como o Antônio Fagundes. Mas fiz trabalhos importantes. Fui para o teatro Oficina, fiquei três anos por lá pesquisando. E aí conheci Antunes Filho, José Celso Martinez Correia, de quem fiquei muito amiga e que apresentou a literatura russa. O Antunes me dirigiu em ´A Grande Chantagem´. Fiz curso com Eugenio Kusnet, um mestre. Pelas mãos dele também passou muita gente, Regina Duarte, Miriam Mehler...
Mulheres: E a televisão?
Marlene França: Bom, nessa época a televisão era muito menosprezada, não era considerada arte, o que é uma bobagem. Mas fiz alguns trabalhos, sendo que um grande sucesso foi `Almas de Pedra´ (1966), em que fui convidada por Walter Avancini. A novela tinha no elenco Glória Menezes, Suzana Vieira, Íris Bruzzi, Francisco Cuoco e Paulo Figueiredo. Esse último, um ator de muito talento, mas muito mal aproveitado. Fazia o meu irmão na novela. E eu também tinha medo da tv, ficava insegura. Além do fato de me chamarem só para interpretar mulher bonita e eu estava mais interessada em me mostrar como atriz.
Mulheres: Voltando ao cinema, ainda na década de 60 você atuou em filmes de Jorge Ileli e de Sérgio Person.
Marlene França: Sim, com o Ileli fiz o `Mulheres e Milhões´ (1961) e com o Person eu fiz `Panca de Valente´ (1968). Eu tinha sido indicada também para fazer `O Pagador de Promessas´, o personagem que seria da Maria Helena Dias e que acabou sendo da Norma Bengell. Quem me indicou foi o Trigueirinho Neto, mas eu não pude fazer, acho que também por problema de saúde. Depois o Anselmo Duarte quis que atuasse em `Veredas da Salvação´, mas de novo eu não pude.
Mulheres: Como foi sua relação com O Luis Sérgio Person, um dos nossos mais importantes cineastas?
Marlene França: Eu e o Person ficamos cúmplices. Ele me achava uma grande atriz. O Person tinha uma inteligência e uma sensibilidade extraordinárias. Eu me lembro que no filme tinha uma cena em que eu tinha que abraçar o Jofre Soares e chorar e eu não conseguia de jeito nenhum. Tentava, tentava e não conseguia abraçar o Jofre de jeito nenhum. E aí o Person interrompeu as filmagens dizendo que era para deixar aquela cena para a próxima semana, porque o sol estava se pondo e estávamos com problema ali. Continuamos as filmagens e a cena foi deixada para depois.
Indo embora para casa eu fui pensando sobre aquilo e notei que o Jofre Soares era muito parecido com meu pai. No outro dia cheguei cedo no set, pois sempre fui muito profissional, com pontualidade inglesa. Daí chamei o Person ao lado e perguntei se ele podia me dar cinco minutos para falar com ele. Ele respondeu dizendo que estava muito ocupado e que não seria possível, mas eu falei que era sobre a cena. Aí contei que na estrada, de madrugada, eu havia descoberto que o Jofre se parecia muito com o meu pai e por isso eu não conseguia. Foi uma cena maravilhosa, nos abraçamos e choramos muito.Durante a minha vida eu tive que fazer terapia, são muitos altos e baixos, muitas mudanças. Terapia é algo comum e necessário.
Mulheres: Nos anos 70 você atua em várias pornochanchadas. Como foi na época?
Marlene França: Fiz e não me arrependo. Lá na Boca do Lixo eu trabalhei com pessoas que eu admiro muito, como o Candeias (Ozualdo), o Fauzi Mansur. Mas não era muito fácil não, foi época da ditadura e a barra era muito pesada. Todos nós éramos perseguidos de uma forma ou de outra. E no meu caso, eu fazia por necessidade de alma, de paixão pelo cinema, sem ter necessidade financeira. Eu era bonita, rica.
Mulheres: Você foi, inclusive, premiada em um filme do Fauzi Mansur, `A Noite do Desejo´ (1973), Prêmio Governador do Estado.
Marlene França: Sim. Eu fazia uma prostituta, uma personagem muito bem-estruturada, um roteiro bem feito. Não tenho prova, mas fiquei sabendo que o Nelson Pereira dos Santos me elogiou na cena final, em que eu como um sanduíche. Ele teria dito que aquela era uma cena antológica. Não sei se é verdade. Meu sonho é filmar com o Nelson Pereira dos Santos, o considero o maior diretor do cinema brasileiro. Sonho em trabalhar com ele, nem que seja para carregar sacolinha para ele.
Mulheres: E por que isso nunca aconteceu?
Marlene França: Não sei, ainda não chegou a hora. Uma vez eu o encontrei no Pelourinho filmando e ele até improvisou uma cena na hora comigo. Mas depois ela não foi usada, não entrou. Mas ainda vou filmar com ele, um dia ele ainda vai me chamar, é o maior cineasta do Brasil.
Mulheres: A época das produções da Boca do Lixo foi um período interessante, em que transitaram pessoas importantes.
Marlene França: Sim, tudo era feito com muito sacrifício, não se podia fazer do jeito que queria. Quando penso em uma figura como o Candeias, tenho maior admiração por ele. Person, Fauzi...
Mulheres: Em 1976 você volta a ser premiada, dessa vez no Festival de Gramado, por `Crueldade Mortal´ (1976), de Luiz Paulino dos Santos.
Marlene França: Foi. Luiz Paulino é um grande diretor, começou em `Barravento´, depois concluído por Glauber Rocha. Esse prêmio eu nem esperava, foi uma surpresa, eu nem estava lá no Festival. Eu fazia uma personagem interessante, uma mulher do subúrbio. O filme era com a Marieta Severo. Não tínhamos muito dinheiro. Foi um filme que eu fiz com prazer, vesti a camisa, estou sempre do lado diretor, que é a peça chave de qualquer filme. Gosto do filme.
Mulheres: Outro encontro importante foi com Roberto Santos, com quem você atuou em `Nasce Uma Mulher´ (1983) e `Quincas Borba´(1987).
Marlene França: Roberto Santos é a outra paixão da minha vida, meu amigo, meu mestre. Existem três referências masculinas importantes em minha vida, meu pai, o Alex Viany e o Roberto.
Mulheres: O Roberto Santos é outro gigante do nosso cinema. Aquele episódio em Gramado foi uma coisa absurda e triste (No festival de 1987 a platéia vaiou a exibição de ‘Quincas Borba´ e a crítica atacou duramente o filme. Pouco depois, Roberto teve um infarto e faleceu).
Marlene França: Foi horrível. O Roberto foi vaiado escandalosamente. As pessoas podem até vaiar, porque nazistas e fascistas existem em qualquer lugar, mas não poderiam ter feito o que fizeram com ele. Aquele Festival é cruel, por lá só brilha quem está na novela das oito. Eles não reverenciam quem está preocupado com o cotidiano do homem brasileiro, como era o Roberto, como é o cinema dele. Eu jurei que nunca mais voltaria aquele festival.
Eu não vou esquecer nunca a expressão de dor na cara do meu amigo, enquanto estávamos almoçando. Aí teve uma exibição do meu filme `Mulheres da Terra´ (1985), ele entrou, deu uma olhada e disse que tava muito bonito tudo aquilo, e me disse `Mas você também não gostou do meu filme´. E eu respondi, `Vamos conversar quando a gente voltar´
Assim como muita gente, eu também achava que tinha que haver um corte de uns dez minutos do filme. Só que eu não iria dizer isso naquela hora. E eu não podia mentir de jeito nenhum para ele. Mas aí no aeroporto mesmo ele passou mal e morreu. Eu jamais vou esquecer a cara de dor do meu amigo, um ser humano extraordinário. O Festival não podia ter feito aquilo com ele, ele deveria ter sido convidado como ´hours concours´, não podiam ter feito aquilo com ele. Eu jamais vou perdoar, como também jamais vou perdoar algumas figuras da imprensa.
Mulheres: Fale para nós sobre seus filmes como diretora.
Marlene França: Então, pela minha própria trajetória de vida eu só poderia vir a ser mesmo uma documentarista. Eu sempre tive interesse pelos oprimidos, pelas mulheres do campo, pelos menores abandonados, pelos bóias-frias, pelas mulheres assexuadas. Eu vim do povo, sou uma mulher do povo, filha de uma grande família nordestina fugindo da seca. Se for do povo eu tenho que olhar de forma muito profunda, tenho que olhar a alma, tenho que penetrar nesse universo. Eu ainda vou sair por esse Brasil com uma câmera, ainda há muito que se filmar por esse país.
Quando eu fiz o `Frei Tito´ (1983) eu fiquei muito impressionada, eu fiquei chocada porque os amigos de meu filho não sabiam quem era ele. Eu nunca entrei em escola para aprender a fazer cinema. O Sílvio Tendler, que é um belo documentarista, me disse ´nunca entre em uma escola, você é o Dovjenko (Aleksandr) de saias´. E aí eu fui fazer o filme, mas fiquei preocupada em não saber como iniciar, como colocar a câmera. O Roberto então me disse que era para eu não me preocupar com nada, que era para eu apenas filmar a chegada do corpo do meu amigo da melhor maneira que eu pudesse, ´O resto você esquece. É o seu amigo que está chegando, essa pessoa está voltando e ninguém sabe a dor que você está sentindo´.
Além do ´Mulheres da Terra´ (1985) eu fiz também o `Meninos de Rua´ (1988). Esses assuntos sempre me chamaram a atenção, eu não posso ver uma criança abandonada, uma criança vendendo picolé, uma rua deserta, a solidão.
Os prêmios que eu recebi como diretora foram:
`Frei Tito’:Aveiro/Portugal, 1984 – Melhor Curta; 1o Festival do Ceará, 1985 – Melhor Filme; Festival de Brasília, 1985 – 5 Kandangos – Júri Popular; CNBB – Margarida de Prata, 1985; Festival de Oberhausen, 1986 – Melhor Filme.
`Mulheres da Terra’:8o Festival Pavana Cuba, 1986 – 2o Prêmio Coral e Prêmio OCIC; CNBB – Margarida de Prata, 1986; Festival de Gramado, 1986 – Melhor Curta-metragem; Festival paris Cinema D’Real, 1987 – Diploma de Participação Especial; Festival de Melbourne/Austrália, 1987 – Melhor Documentário.
`Meninos de Rua’:CNBB – Margarida de Prata, 1987; Festival de Oberhausen, 1987 – Melhor Filme.
Eu e o Sílvio Tendler somos os únicos documentaristas a receber três prêmios Margarida de Prata consecutivos.
Mulheres: Como está a sua carreira de atriz, há muito tempo você não atua?
Marlene França: Pois é, eu não sei porque a televisão não me chama. Meu último trabalho foi uma produção sobre a Guerra dos Farrapos, dirigida por Carlos Coimbra para a TV Bandeirantes. Fiz trabalhos maravilhosos também para a TV Cultura como o ´Antes do Baile Verde´, da Lygia Fagundes Telles, dirigido pelo Roberto.
Mulheres: E a carreira de diretora?
Marlene França: Então, passei um ano pesquisando sobre essa mulher extraordinária que foi Carmen Santos. É impressionante a história de vida dessa mulher, que veio pobre de Portugal e chegou onde chegou: atriz, produtora, diretora. Ela deixou um trabalho lindo. Pesquisei muito sobre ela, mas não consegui levara adiante. Fiz uma besteira que foi me associar a uma produtora que não era do meio. Como sou casada na família Matarazzo... você sabia disso?
Mulheres: Sabia, mas não durante quanto tempo.
Marlene França: Sou casada até hoje. Temos três filhos. Mas você sabe também que a família faliu, né? (risos). Então, por isso acho que ela cresceu o olho e orçou o projeto muito alto. Cada dia aumentava o orçamento um pouco mais, inventava coisas. E teve também a questão dos herdeiros. Trabalhar com herdeiros é complicado, eles embargam tudo, eu tinha que viajar com fotógrafo para fazer pesquisa e acabou ficando tudo muito complicado. Daí não consegui levar adiante.
Mulheres: Mas não quer dizer que você ainda não possa realiza-lo, não é?
Marlene França: Pois é. Tenho vontade também de fazer um filme sobre o Alex Viany. Nem que seja mesmo um curta. É como se eu precisasse falar de poesia com o Alex, colocar a doçura da Adélia Prado e o universo do Vale do Jequitinhonha. Para mim nem parece que ele morreu, tenho fotos dele espalhadas pela casa.
Esse ano estou mais dedicada à família. Mas no ano que vem eu devo retomar a minha carreira.
Mulheres: Há alguma mulher, ou mais de uma, que você gostaria de citar, homenagear aqui no Mulheres.
Marlene França: A Maria do Rosário Caetano, por quem eu tenho paixão. Ela está fazendo um livro sobre mim para a Coleção Aplauso e a gente vive falando pelo telefone, ela já me mandou separar muitas fotos. É incrível a paixão dela. Na minha vida é assim, eu amo ou não amo. E eu tenho a maior admiração, o maior amor, o maior respeito por ela.
Eu quero homenagear também a Vanja Orico. Imagine, uma mulher que filmou com o Fellini, que cantou na União Soviética, em Cuba, que continua a fazer tanto pelo nosso cinema e que está esquecida, abandonada. Eu tenho o maior respeito por ela.
E também, é claro, a Carmen Santos. É isso, Maria do Rosário Caetano, Vanja Orico e Carmen Santos.
Mulheres: Mais alguma coisa que você quer acrescentar.
Marlene França: Sim, quero te agradecer muito e dizer que tenho o maior respeito com quem faz pesquisa séria, ainda mais nesse país sem memória. Fico feliz com um site como esse porque as pessoas da minha geração me conhecem, mas as outras não. Por isso fico feliz em saber que os estudantes de cinema poderão entrar no site e conhecer um pouco mais sobre todas nós. São poucas as pessoas que fazem isso, como a Maria do Rosário. Muito obrigada.
Mulheres: Muito obrigado. E muito obrigado pela maravilhosa entrevista.
Marlene França: Obrigada e um beijo.
Entrevista realizada em janeiro de 2005.
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