Ano 20

Karine Teles

Karine Teles nasceu em Petrópolis, Rio de Janeiro, no dia 16 de agosto de 1978. Aos 14 anos muda-se para Maceió (AL), onde fica três anos, faz escola de teatro e atua em seu primeiro espetáculo, antes de mudar-se para o Rio de Janeiro, capital.  Lá cursa a Faculdade de Teatro da UniRio : “Meu primeiro espetáculo foi em 1993, em Maceió, foi O despertar da primavera, de Frank Wedekind, um texto superclássico que muita gente monta. Eu fiz mais alguns espetáculos lá, e depois, já vindo para o Rio de Janeiro, no meu primeiro ano de Rio, eu fiz um musical no Centro Cultural Banco do Brasil, com direção do André Paes Leme. Aí eu já comecei a conhecer as pessoas, mas a maior parte dos meus trabalhos como atriz é com jovens autores, jovens diretores, uma galera que meio que cresce junto.” A partir daí jamais abandona os palcos e atua em cerca de 35 espetáculos, entre eles uma parceria importante com a diretora Bia Lessa.

Na televisão só faz um trabalho, no seriado Malhação, da Rede Globo, mas a experiência não foi boa para a atriz. Se o teatro é para ela um espaço natural, o cinema vai ocupar um lugar muito especial em sua vida. Depois de atuar em documentário de Silvio Tendler, torna-se assistente pessoal do cineasta Karim Ainouz e atua em Madame Satã: “Eu trabalhava tudo, todo o resto da vida dele, cuidava dos outros projetos, da agenda dele, cuidava das outras coisas. Eu tinha feito um teste para o Madame Satã antes de começar a trabalhar para o Karim e já tinha sido chamada para fazer uma participação, bem antes de virar assistente dele. Daí no processo eu virei assistente dele e fiz a participação no filme também. Então, a minha primeira sensação de set de cinema, de verdade mesmo, é em Madame Satã.”

O trabalho no cinema se intensifica e Karine Teles passa a desempenhar também a função de roteirista, além da de atriz. O filme que a projeta para o grande público é o belíssimo e premiadoRiscado, de Gustavo Pizzi - seu marido -, em que protagoniza e assina o roteiro, que partiu de sua história pessoal: “O Riscado surgiu de um momento de gota d'água. Porque eu sempre tive essa questão, desde que eu me entendo por gente no meio artístico: o que é que faz uma pessoa ter sucesso e a outra não ter? Será que é só talento? E, realmente, é uma dúvida que eu tenho até hoje. Será que é só o cara ser talentoso? Se ele for talentoso, e ele trabalhar, e ele for dedicado, ele vai ter uma carreira? Ele vai sobreviver disso, vai viver disso, vai ter sucesso, vai ter trabalho? Será? Eu estava numa fase muito complicada, de desilusão.”

Karine Teles esteve na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2012, para o lançamento de Riscado, de Gustavo Pizzi. Ela conversou com o site Mulheres do Cinema Brasileiro e revisitou sua trajetória, os trabalhos no teatro, a experiência na televisão, os curtas, o sucesso inesperado do longa Riscado e outros assuntos.



Mulheres do Cinema Brasileiro: Qual sua origem, data de nascimento completa e formação?

Karine Teles: Eu sou de Petrópolis/RJ, nasci no dia 16 de agosto de 1978, leonina. Morei até os 14 anos em Petrópolis, fui para Maceió, onde fiquei três anos, e daí fui para o Rio fazer faculdade de Teatro.

MCB: Quando?

KT: Eu sou do primeiro período de 1996 da UniRio.

MCB: Então sua formação foi na faculdade de Teatro da UniRio?

KT: Antes da faculdade de Teatro da UniRio eu fiz o curso técnico da UFAL, em Maceió, um curso que hoje em dia já tem um nível universitário. Na época em que eu fazia não existia a possibilidade da universidade de teatro lá, daí eu fiz o curso técnico durante os três anos em que eu morei em Maceió, e quando eu terminei o segundo grau fui para o Rio pra fazer a faculdade de Teatro.

MCB: Você tem uma carreira longa no teatro no Rio de Janeiro, não é? Gostaria que você falasse sobre essa trajetória.

KT: Meu primeiro espetáculo foi em 1993, lá em Maceió, foi O despertar da primavera, de Frank Wedekind, um texto superclássico que muita gente monta. Eu fiz mais alguns espetáculos lá, e depois, já vindo para o Rio de Janeiro, no meu primeiro ano de Rio, eu fiz um musical no Centro Cultural Banco do Brasil, com direção do André Paes Leme. Aí eu já comecei a conhecer as pessoas, mas a maior parte dos meus trabalhos como atriz é com jovens autores, jovens diretores, uma galera que meio que cresce junto. Por exemplo, o Walter Daguerre é um cara da minha geração, ele está com um filme aqui no festival também. É uma geração que está crescendo junto. É uma carreira extensa, eu fiz muitos espetáculos, eu tenho mais de 35 espetáculos no currículo. É muita coisa, mas espetáculos pequenos, com produções pequenas, em teatros pequenos, para plateias pequenas (risos). Eu não sou uma atriz de grandes coisas, eu gosto de ir aos pouquinhos. Eu trabalhei com alguns grandes diretores, como a Bia Lessa, uma parceira bem constante, eu já fiz três espetáculos com ela. Eu conheci a Bia fazendo Comparsaria,  no Municipal. Daí a gente se gostou e fui trabalhando com ela. Para a minha carreira de atriz, para o meu trabalho de atriz, para o meu entendimento do que é um ator e do que é um artista e tal, ela é fundamental na minha vida. Ela me deu um norte muito grande, é uma pessoa em que eu acredito muito, nas ideias dela e no que ela faz.

MCB: Quais foram os espetáculos dela que você fez?

 KT: Eu fiz As três irmãs, meu primeiro espetáculo com ela. Era um elenco maravilhoso, tinha o Otávio Müller, foi aí que eu conheci o Otávio, a Betty Gofman, a Ana Beatriz Nogueira, a Renata Sorrah. Eu tinha um personagem superpequeno, mas para mim foi fundamental observar essas pessoas construindo o personagem, eu aprendi muito. Depois eu fiz Casa de bonecas, uma coisa superexperimental da Bia, uma coisa meio cinema e meio teatro, ela filmou o espetáculo todo e ficou em cartaz no teatro no CCBB. A Betty Gofman fazia um início ao vivo, passava o filme, e ela fazia um final ao vivo também. E aí por último eu fiz o Formas breves, há dois anos, que era também uma coisa completamente voltada para as artes plásticas, superexperimental. Foi a última coisa que eu fiz com ela. 

MCB: Fora o teatro, você fez algumas pequenas participações em televisão. Foi antes ou depois do cinema?

KT: Foi antes.

MCB: Eu queria que você falasse desse trabalho na televisão.

KT: Foi em 1999, se eu não me engano, foi finalzinho de 99, eu fiz Malhação. Fiz uma participação, fiquei no ar um mês. Eu estava em cartaz na faculdade com Anjo negro, do Nelson Rodrigues, fazia a Virgínia, um personagem superforte. Aí uma produtora da Globo foi assistir e me convidou direto, não fiz teste, não fiz nada, tipo “ah, vem fazer esse personagem”. Era uma vilazinha. Eu fiz essa participação, mas eu sofri muito na época. Foi muito difícil para mim, muito difícil, muito, tinha 19 anos, foi muito difícil. E aí depois não fiz mais nada na televisão. Nunca mais.

MCB: Sofreu e foi difícil por quê?

KT: Porque eu tinha uma certa arrogância da idade, de estar protagonizando o Nelson Rodrigues na faculdade, de me achar muito inteligente e achar que eu ia saber fazer televisão. Então eu não me preparei, falei “ah, televisão é mole, essa gente ridícula fazendo, é muito fácil”. E aí tomei um susto, porque é um veículo, é uma coisa diferente, eu não entendia muito para onde tinha que ir a interpretação, sabe? As pessoas falavam “ah, você faz caras demais, seu rosto não pode se mexer tanto porque a câmera está muito no seu rosto, você tem que diminuir um pouco”. Aí eu diminuía demais, eu não conseguia achar o equilíbrio, sabe, fora que, para mim, com 19 anos, com pouquíssima experiência, entrar jogada assim nesse meio da televisão, que é muito competitivo... Tem uma dificuldade ali... Hoje em dia eu não teria nenhum problema, sabe, não sofreria. Mas aos 19 anos, nesse momento da vida, foi uma relação complicada, foi bem difícil, tanto que eu nunca mais procurei televisão. Foi uma coisa pra qual eu nunca mais me esforcei, não levava material, sei lá.

MCB: Mas hoje, com a sua maturidade, você tem vontade de fazer?

KT: Faria, faria sim, principalmente as coisas mais trabalhadas da televisão. Óbvio que eu faria uma novela, porque também acho que é interessante passar por essa experiência, pela experiência de você construir um personagem ao longo de meses. Eu acho muito interessante essa possibilidade e acho que seria uma história completamente diferente, eu já lidaria com tudo de uma outra forma, 20 anos depois, 24 anos depois, muito tempo (risos). 

MCB: Fora que, imagino, para um ator deve ser importante também, porque isso é se apropriar de uma outra linguagem, não é?

KT: É, exatamente. Eu acho que é um exercício importante também, que eu não conheço, nunca passei por essa experiência. Então eu acho que provavelmente me acrescentaria muita coisa, eu poderia aprender muito também, porque existem muitos bons atores de TV, não é? As pessoas fazem muito bem e eu acho muito difícil, acho muito desafiador você decorar texto todo dia para gravar no dia seguinte, passar por esse processo, acho muito interessante. Mas a minha experiência com televisão é só essa e é muito pequena. Já o cinema eu tinha muita vontade, sempre tive, mas quando eu comecei a trabalhar como atriz o cinema nacional era uma produção praticamente nula, não é? Não acontecia nada. Eu me lembro da minha felicidade quando eu assisti o Terra Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas), lembro assim, eu chegando ao cinema, vendo o curta sobre o Franz Weissmann, que passou antes, assistindo ao filme inteiro, e ficando muito emocionada. O Carlota Joaquina (Carlota Joaquina – princesa do Brazil, de Carla Camurati)... Eu morava em Maceió ainda, mas eu nem pensava na possibilidade, achava aquilo completamente distante da minha realidade. Eu estou tentando lembrar qual foi a primeiríssima coisa que eu fiz em cinema. Eu me lembrei, foi uma participação em um documentário do Silvio Tendler, quase uma figuração, uma coisa superpequena, um documentário que eu nem vi pronto no cinema, nem sei se ele terminou.

MCB: Você não se lembra do nome?

KT: Eu não me lembro, nossa, tem muitos anos. Era sobre Manuel Bandeira. Deve ter sido em 96, 97, muito tempo atrás mesmo.

MCB: Você se lembra, você consegue rememorar, de alguma forma, a sua primeira impressão de estar em um set de cinema?

KT: A sensação que eu tive de estar num set de cinema pela primeira vez foi em Madame Satã(Karim Aiñouz).

MCB: Você trabalhou nesse filme?

KT: Trabalhei. Eu filmei alguns dias. Eu era assistente do Karim, mas eu era assistente pessoal dele, então eu não tinha envolvimento direto com o filme. Eu trabalhava tudo, todo o resto da vida dele, cuidava dos outros projetos, da agenda dele, cuidava das outras coisas. Eu tinha feito um teste para o Madame Satã antes de começar a trabalhar para o Karim e já tinha sido chamada para fazer uma participação, bem antes de virar assistente dele. Daí no processo eu virei assistente dele e fiz a participação no filme também. Então, a minha primeira sensação de set de cinema, de verdade mesmo, é em Madame Satã.

MCB: Mas entre o filme do Tendler e o dele teve algum outro trabalho?

KT: Não, não teve nada.

MCB: Então começou ali um trabalho que, imagino, venha desaguar neste momento agora, que virou mais uma constante, essa questão do cinema. É isso mesmo?

KT: É. Depois do Karim eu fiz um curta, um projeto da TNT, não sei se ainda tem, o Projeto 48. É um reality de cinema em que eles faziam um concurso, escolhiam um roteiro e aí esse roteiro tinha que ser filmado e finalizado em 48 horas. E aí eles fazem vários, é uma produtora mexicana, se eu não me engano, e eles fazem em vários países. Quando fizeram no Brasil foi no Rio, e eu fiz como atriz. Foi uma experiência muito louca, muito louca.

MCB: Como se chamava?

KT: Jaz aqui a liberdade, que era o nome do curta, dentro do Projeto 48. Ficou até um filme bonito, do Diogo Ely. Nunca mais tive contato com ele, a gente nunca mais se encontrou. Foi um filme que morreu ali, não passou mais em nenhum outro lugar, não teve uma história por questões até de contrato, de produção, era um programa para a televisão. Mas foi uma experiência muito forte, de fazer o primeiro plano sequência, primeira vez em que eu participei de um plano sequência como protagonista do plano, tinha uma cena grande. A minha personagem era filha de um fazendeiro rico, sequestrada pelos cangaceiros e presa na casa de uma família. Eles davam dinheiro para a família me esconder e aí eu conseguia fugir. Então era um plano sequência, eu conseguindo sair de dentro do quarto onde eu estava presa,  já quase morrendo de fome e de sede. Era o finalzinho do filme, era um plano sequência grande, o Fabrício Tadeu era o câmera, era com uma steady cam. Foi um filme muito emocionante, porque a gente ensaiou duas vezes e acertou de primeira, rolou no primeiro take e a equipe inteira aplaudiu, foi superemocionante. Daí falei “gente, é bom esse negócio, hein, esse negócio de cinema é muito gostoso”. E aí foi indo, fiz umas coisas com o Cavi Borges, em um outro esquema de produção, participei muito ativamente da produção do documentário do Gustavo Pizzi, Pretérito perfeito, que tinha até algumas partes com atores.

MCB: Você atua?

KT: Eu atuo e produzi o Pretérito perfeito, minha participação na produção é maior do que minha participação como atriz.

MCB: Voltando um pouquinho. Essa sua relação com o Karim, na época do Madame Satã, é que te deu ferramentas para estar no cinema em outras funções além da de atriz? Ou não? Você já pensava assim, que ia produzir, fazer roteiro, ou essas possibilidades surgiram ali no Madame Satã?

KT: Eu acho que pode ter começado ali, mas tem uma outra coisa, um dado fundamental. Depois do Karim, eu fui trabalhar com o Jonathan Nossiter, um diretor americano muito amigo dele. Foi o Karim me indicou pra ele, dizendo que teve uma assistente ótima. Eu fui trabalhar com o Jonathan, eu acompanhei muito os bastidores da criação de uma ficção, porque quando eu comecei a trabalhar com ele, em 2005, ele estava lançando o documentário dele aqui no Brasil e começando a preparar o projeto seguinte. Então eu aprendi muito com ele, as coisas do elenco, da preparação dos atores, da pesquisa. Eu participei ativamente de todo esse processo, então isso foi muito importante também para entender isso. A coisa da produção vem do teatro, porque como atriz de teatro, se você não entende de produção... Quer dizer, eu sei fazer qualquer coisa no teatro, você pode me pedir pra fazer qualquer coisa dentro do teatro que eu sei fazer, montar luz, operar luz, montar som, operar som, eu sei pequenas coisas de carpintaria, eu costuro inclusive no Riscado, o figurino da minha personagem todo fui eu que fiz, eu costurei as roupas dela. Assim, acho que essa desenvoltura com a produção de uma obra de arte vem do teatro, foi ele que me deu isso de saber me virar com tudo. E eu tive uma produtora, fui sócia de uma produtora que existe até hoje, mas que eu larguei porque realmente para produção tem que ter vocação, e eu não tenho. Minha vocação é a atuação, mas eu produzi muitas coisas, produzi música, teatro, produzi exposições, eventos. Eu tive essa produtora, de 2001 a 2005.

MCB: O Pretérito perfeito é dessa época?

KT: É, dessa época. É dessa fase da produção. Eu nunca deixei de fazer teatro, sempre fiz teatro paralelamente, sempre fiz. Mas eu brinco, aquela coisa de americano, não é? Day job. O meu day job era a produção.

MCB: E já era casada com o Gustavo (Pizzi)?

KT: Já. Eu estou com o Gustavo desde 2003.

MCB: Como é essa relação de trabalho entre diretor e atriz, sendo marido e mulher? Facilita, dificulta ou é normal?

KT: Olha, no Riscado foi a primeira vez em que a gente trabalhou junto, assim, ele me dirigindo. A gente sempre se frequentou, sempre acompanhei os trabalhos dele, ele sempre acompanhou os meus, a gente sempre conversou sobre os nossos trabalhos, sempre trocou muita ideia. Quando a gente se conheceu, o Gustavo trabalhava com cinema, também sendo assistente. É engraçado, porque  quando ele saiu da produção do Madame Satã, eu entrei, então a gente se esbarrou, a gente não se conheceu na época do Madame Satã, a gente se conheceu um pouquinho depois.

MCB: A minha pergunta não é ainda nem sobre o Riscado, mas sobre o Pretérito perfeito. Sobre a relação também como produtora e ele como diretor, já que lá você atuou um pouquinho.

KT: Funcionou muito bem, porque ele também era produtor. A gente já morava junto. Com a gente funciona (bate na madeira), espero que continue funcionando. A gente acredita na mesma coisa, sabe, então a gente nunca discute, as grandes questões não são problemas para nós, porque a gente acredita nelas do mesmo jeito. Óbvio que a gente discute como se discute em qualquer trabalho, de posicionamento de opinião, ele tem uma opinião, eu tenho outra e tal. Mas quando ele está me dirigindo, ele é o diretor e eu sou a atriz, tem uma hierarquia. Principalmente em cinema, tem essa hierarquia do set, é tão delicado o funcionamento daquilo, é tão importante que a mecânica funcione para o andamento da coisa. A gente conversou muito sobre isso e conseguimos manter esse acordo, ele era o diretor e eu era a atriz, então eu não me envolvia em nenhum problema de produção, de set, de nada. Eu também só levava questões diretamente relacionadas ao meu personagem naquele momento, entendeu? Ou ao roteiro, porque eu também era roteirista do filme (risos).

MCB: O Riscado é um momento importante, marcante da sua carreira, mas nesse período teve outros curtas? 

KT: Teve. Eu fiz aquela série do Cavi Borges, Mateus, o balconista, que é um esquema de produção super bacana também, eu adorei fazer, foi para o You Tube, o meu episódio é o mais visto, tipo 100 mil visitas. É uma coisa impressionante, que eu adoro, tenho o maior orgulho de ter feito. O que mais? Antes do Riscado a gente escreveu o roteiro do Gilda, um espetáculo que eu fiz em 2004, escrito pelo Rodrigo de Roure. Desde o primeiro dia o Gustavo falou assim: “Isso é um filme, vamos fazer um filme”. Aí a gente escreveu o roteiro, mas não conseguiu produzir, o Riscado acabou passando na frente do Gilda. Então eu já tinha passado pela experiência do roteiro com o Gustavo antes. E aí eu fiquei mais no teatro, e foi só. Antes do Riscado eu só fiz uma participação no filme do Jonathan Nossiter, que ele filmou no Rio, tive a honra absurda de contracenar com a Charlotte Rampling.

MCB: Qual o nome do filme?

KT: Rio sexy comedy. Mas a minha participação não entrou no filme, o personagem caiu. Ele filmou cinco meses, ficou cinco meses filmando, e tem um monte de personagens que acabaram não entrando na parte final. Ele fez um filme de uma hora e meia com esse material de cinco meses de filmagem. Mas pra mim foi uma experiência fundamental e importante por ter contracenado com essa mulher tão absurda, tão incrível, que eu respeito tanto, e por ter tido um diálogo bacana com ela. Foi bonito, a cena foi bonita.

MCB: O Riscado surgiu de uma questão pessoal...

KT: É, o Riscado surgiu de um momento de gota d'água. Porque eu sempre tive essa questão, desde que eu me entendo por gente no meio artístico: o que é que faz uma pessoa ter sucesso e a outra não ter? Será que é só talento? E, realmente, é uma dúvida que eu tenho até hoje. Será que é só o cara ser talentoso? Se ele for talentoso, e ele trabalhar, e ele for dedicado, ele vai ter uma carreira? Ele vai sobreviver disso, vai viver disso, vai ter sucesso, vai ter trabalho? Será? Eu estava numa fase muito complicada, de desilusão. Essa questão do Rio sexy comedy, em que eu ia fazer um papel maior, e aí por uma questão da língua, porque a minha personagem inicialmente contracenaria mais com a Irene Jacob e ela é francesa. E aí teve a coisa do inglês, o personagem do ator que é marido dela, com quem também eu contracenaria muito, não fala inglês. Então ia ficar uma complicação para legendar e o filme já tinha muitas línguas.  Aí acabou sendo uma outra atriz,  que falasse francês, que acabou fazendo. Tanto que entra essa brincadeira no Riscado, em que a Bianca perde o papel porque ela não fala francês. Isso pra mim foi muito, muito duro, porque eu estava muito animada com a possibilidade de participar de uma produção internacional, contracenar com esses atores por um período.

MCB: Mas eu sei que foi um projeto que você acompanhou durante muito tempo.

KT: Acompanhei durante muito tempo. Eu saí do projeto antes de começar a produção. Eu saí na preparação ainda, quando ia começar de fato a produção, o Jonathan estava distribuindo os cargos já para o filme. Ele queria que eu fizesse a segunda assistência de direção junto com a assistência pessoal dele, além de trabalhar como atriz. Eu nunca tinha trabalhado como assistente de direção de cinema e eu sei que é completamente diferente. Eu já tinha acompanhado e visto que é completamente diferente do trabalho no teatro, era uma coisa que não me interessava, que eu não tinha vontade de fazer. Eu achava que ia sofrer em estar participando no filme nessa função, eu achava que ia ser muito duro para mim. Daí eu saí do projeto, eu pedi demissão. Eu falei “olha, eu já estou trabalhando com você há três anos, mas eu sou atriz. Eu preciso ter a coragem de trabalhar só como atriz, é uma coisa que eu nunca tinha feito”. Quando eu comecei a fazer teatro, aos 14 anos, eu tive meu primeiro emprego, era professora de inglês. Fiz meu primeiro espetáculo e tive meu primeiro emprego formal. Eu sempre tive um trabalho paralelo, dei aula de inglês, fiz produção, trabalhei com evento, sempre tive uma outra coisa para me sustentar, para pagar minhas contas. Eu vim para o Rio, morava sozinha, sempre corri atrás. Aí eu me toquei que nunca tinha me dado esse direito, de ver o que aconteceria se eu fosse só atriz. Então resolvi aproveitar esse momento em que eu estava tão desiludida, para me jogar e ver o que acontecia. Aí pedi demissão, saí do projeto, e depois eu só fui voltar a ter contato com ele já nas filmagens. No processo final, o roteiro que ele acabou filmando é completamente diferente do roteiro que eu conhecia, mudou muita coisa. Eu nem assisti ao filme ainda, mas, enfim, eu já sei, conversando com outras pessoas, que mudou completamente.

MCB: Já foi lançado?

KT: No Brasil não. No Brasil passou no Festival do Rio e não passou no cinema.

MCB: Você não ficou curiosa para ir lá ver?

KT: No Festival do Rio eu estava gravidíssima.

MCB: Dos gêmeos?

KT: É, eu tive gêmeos. Eu estava muito grávida, a minha locomoção já era complicada. Estava a coisa do Riscado acontecendo ao mesmo tempo, então no dia em que o filme passou eu não consegui ir, e aí depois nunca mais eu vi. Enfim, vira e mexe eu falo com alguém “ah, eu tenho que tentar ver, pegar um DVD, tentar dar um jeito de ver”. Porque acho que não lançaram ainda nem em DVD aqui não.

MCB: Você acabou transformando esse episódio pessoal em cinema, no Riscado.

KT: É, na verdade, o que aconteceu, acho que isso foi a faísca que me fez escrever o Riscado. Eu fiquei tão angustiada com as coisas da sorte, que eu falei “nossa, que falta de sorte”. Achei que tinha sido uma falta de sorte e, aí, falei com o Gustavo, “ah, eu vou escrever sobre isso”. Não sobre esse episódio especificamente, mas sobre essa coisa da sorte na carreira do ator. A primeira ideia era de uma pessoa que vira figurante da sua própria história, era a partir disso, eu queria falar sobre isso, uma pessoa que vira...

MCB: Que é a Bianca?

KT: Que é a Bianca. E aí eu fui juntando outras experiências, outras coisas que eu tinha vivido. Alguns atores colaboraram também, depois de um período de ensaio, com coisas pessoais. A Gisele Fróes, por exemplo. Naquela cena do aluguel, em que ela é a senhoria, ela botou muita coisa dela ali, de coisas que ela já ouviu falar e ela falou pra mim. O Lucas Gouveia, que faz o meu chefe lá da firma de divulgação também. Então rolou essa catarse assim, no sentido de que toda a equipe, todas as pessoas entenderam o que a gente queria falar e contribuíram artisticamente para a questão. Todo mundo meio que comprou a ideia e foi junto, mas eu sempre falava assim: “ORiscado é um filme mais pessoal do que biográfico”. Porque no processo da escrita do roteiro as coisas foram se transformando, mesmo que elas tenham partido de experiências concretas, no filme elas viraram uma outra coisa. Então a Bianca não é uma representação minha, mas ela nasceu das minhas dúvidas, das minhas angústias. As nossas questões são as mesmas, mas ela é uma pessoa completamente diferente de mim, uma atriz completamente diferente de mim. Eu nunca estive naquele lugar, de estar vivendo um trabalho de ator, fazendo bicos. Eu tive uma outra profissão, não é, ao mesmo tempo. Eu acho que eu estou dividida ali entre a Bianca e o Maurício, eu acho que eu sou os dois. 

MCB: Foi quanto tempo de projeto?

KT: Foi muito rápido, porque o roteiro ficou pronto rápido.  O Cavi tinha uns prêmios de curta-metragem que ele tinha realizado na Cavídeo e ele falou “eu posso reverter esses prêmios para o projeto de vocês, a gente investe um pouco do nosso dinheiro também”.  Filmamos uma primeira parte, uma filmagem de quatro dias, isso foi em maio de 2009, e daí editamos esse material. Durante as filmagens, o Gustavo já começou a falar que não era um curta, que a gente ia ter que filmar mais, que precisava de mais. Eu achava que era completamente louco, como a gente podia fazer um longa sem dinheiro, não dá. E ele, “não, a gente vai fazer, vai fazer”. Aí ele pegou esse material e mandou para o Canal Brasil. Com o Cavi e o Canal Brasil, a gente fez uma pré-venda para o Canal Brasil, aí eles deram mais um dinheirinho. Com isso conseguimos produzir a segunda etapa, então a gente trabalhou mais no roteiro e aí filmamos mais oito dias, em fevereiro de 2010. Em maio de 2010 o filme estava pronto.

MCB: Rapidamente.

KT: Foi muito rápido. 

MCB: Você tinha noção desse sucesso do filme?

KT: Nenhuma noção. Eu gostava muito do filme, desde o início eu achava que tinha uma questão pertinente. Mas eu não tinha a menor ideia de como ele ia ser recebido, não tinha a menor ideia. Foi uma alegria muito grande, é um filme que até hoje continua surpreendendo a gente. Quando pensamos que acabou, aí vêm as listas de melhores do ano e ele está em quase todas.

MCB: E vários prêmios, Festival do Rio, Festival de Gramado...

KT: Festival do Rio, Festival de Gramado, Festival de Sergipe. Ganhamos um prêmio em Amsterdam em um festival chamado World Cine Amsterdam, que é uma seleção lindíssima de melhor do cinema mundial. São oito filmes apenas e a gente participou e ainda ganhou um prêmio. Agora teve o APCA em São Paulo, de Melhor Roteiro.

MCB: Vocês já estão com algum outro projeto engatilhado?

KT: Sim. A gente tem um roteiro que eu escrevi para o Gustavo dirigir com o Daniel Tendler. Na verdade é um projeto do Daniel, eles me chamaram para escrever e para fazer. É para filmar ainda nesse primeiro semestre, já tem uma parte do dinheiro, estão terminando de captar um pouquinho mais. Ainda está sem nome, estamos com essa dificuldade.

MCB: Tem um outro filme também, não é?

KT: Tem. Eu fiz O lobo atrás da porta, do Fernando Coimbra. Filmei no ano passado. A última notícia que eu soube é que ele estava no segundo corte. Fiz também uns curtas. Fiz um baseado no conto do Fernando Veríssimo, que é inspirado em música do Chico Buarque. Fiz um bem interessante chamado O homem móvel, com o Aloísio Guelman, uma participação também. Além disso ainda tem o Gilda, que a gente está tentando.

MCB: Esse é longa?

KT: É longa. A gente precisa de um dinheiro um pouquinho maior, precisa de um BO (prêmio de baixo orçamento) para fazer o Gilda, um milhãozinho pelo menos.

MCB: Ele não tem nada a ver com a personagem Gilda, da Rita Hayworth, não?

KT: Não, nada a ver.

MCB: É porque no Riscado há citações à Marilyn Monroe, Carmen Miranda...

KT: Pois é. A gente está até pensando se mantém esse nome.

MCB: É, porque vem imediatamente à cabeça a personagem dela.

KT: Vem direto, não é? A gente brinca que vai chamar Leovegilda, mas ela prefere ser chamada de Gilda (risos).

MCB: Qual mulher do cinema brasileiro, de qualquer época e de qualquer área, você gostaria de deixar registrada em sua entrevista, como homenagem?

KT: Pode ser mais de uma? Uma que já morreu e uma que está viva?

MCB: Pode.

KT: Carmen Miranda. É sensacional o trabalho dela, eu teria muita alegria se tivesse visto ela pessoalmente, tivesse chegado perto. Ela tinha uma sinceridade, uma honestidade, uma verdade ali, sabe, uma entrega por aquilo, que era tão comovente. A Fernanda Montenegro é um grande exemplo. Tudo dela, mas o trabalho no cinema geralmente me comove, inquieta. Ela não senta na fama e relaxa, sabe, é uma pessoa a fim de continuar, de buscar, de aprender, de topar projeto. É uma meta na minha vida, a de nunca sossegar, eu espero conseguir nunca sossegar.

MCB: Obrigado pela entrevista.

KT: Obrigada.


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 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.