Livremente inspirado em Crime e castigo, de Dostoiévski, Nina marca as estreias do cineasta Heitor Dhalia – diretor do curta Conceição - em filmes de longa-metragem, e da atriz Guta Stresser como protagonista. No filme ela é a personagem título, aparentemente uma garota como tantas outras que cruzamos pelas noites das grandes capitais, no caso do filme, a agitada cena eletrônica de São Paulo.
Nina veste-se de preto, cor também presente em sua maquiagem e que, metaforicamente, é utilizada na fotografia escura, e belíssima, do filme. Não parece haver muitas frestas para que Nina possa conduzir sua vida e, no momento, se vê em situação de penúria e subjugada aos horrores de sua locatária, Dona Eulália. Proprietária da casa em que Nina aluga um quarto, Dona Eulália mostra-se mesquinha, insensível e, mais que isso, possuída de um sadismo mórbido pelas desventuras da inquilina.
Como Raskolnikóv, o personagem do clássico Crime e castigo, Nina acredita que a vida é dividida entre pessoas ordinárias e extraordinárias, e nessa polarização estão Dona Eulália no primeiro grupo e ela própria no segundo. Tirar sua locatária de cena pode significar a eliminação de uma ordinária que impossibilita o existir de uma extraordinária.
Em entrevista ao Mulheres, Guta Stresser disse que esteve envolvida no projeto do filme desde o início, quando Heitor Dhalia a viu no teatro atuando na acachapante peça Mais perto, e a convidou. Esse contato, aliás, foi anterior ao seu sucesso televisivo em A grande família – segundo ela, e muito apropriadamente, diga-se de passagem, como um oásis na programação de TV.
Guta Stresser esteve mesmo soberba em Mais perto e é uma atriz que merece ser mais conhecida pelo público no teatro. Sua atuação em A grande família é interessante, mas é no palco que ela já demonstrou do que é capaz. Em Nina sua composição é atraente, já que ela mesmo disse que em nenhum momento quis fazer uma personagem catártica, como Olga, interpretada por Camila Morgado em filme dirigido por Jayme Monjardim, por exemplo. Nina, apesar dos dramas vivenciados e suas alucinações culposas, é uma personagem próxima do natural, mas sem essas, felizmente, composições naturalistas que infestam a telinha.
Guta compõe a personagem título com entrega, mas quem rouba mesmo a cena mais uma vez é a gigante Myriam Muniz. “Não é problema meu!”, com essa frase em voz grave e rascante, Myriam emplaca sua dona Eulália em uma galeria de personagens inesquecíveis que a atriz já interpretou no cinema, como em Mar de rosas, Das tripas coração e Amélia, todos de Ana Carolina. Aliás, é essa fundamental cineasta quem melhor vem explorando o talento dessa atriz que, inexplicavelmente, é tão pouco requisitada pelo cinema nacional.
No elenco de Nina estão ainda Sabrina Greve, atriz que protagonizou Uma vida em segredo, de Suzana Amaral. Greve é Sofia, que com uma expressão apaixonada, mas não arrebatada, sinaliza a possibilidade de amor para Nina, caso ela quisesse enveredar por essa possível saída. Já Luiza Mariane é Alice, companheira de Nina nas noitadas,assim como também o é Juliana Galdino, como Ana. As três atrizes têm boas participações no filme, cada uma delas dando veracidade à fauna pela qual Nina transita e relaciona.
Heitor Dhalia arrebanhou um grupo de atores autorais para pequenas participações: Wagner Moura, Abrahão Farc, Guilherme Weber, Milhem Cortaz, Selton Mello, Lazáro Ramos e Matheus Nactergaele. E junto a eles está também Renata Sorrah como uma prostituta bêbada que nos rouba o olhar por completo em sua pequena, mas inesquecível aparição.
O roteiro do filme é assinado por Dhalia e por Marçal Aquino. Destacam-se a fotografia de José Roberto Eliezer e os geniais desenhos de Lourenço Mutarelli que invadem a cena durante as alucinações e ações violentas de Nina.
Na ficha técnica, há uma boa presença de mulheres: Guta Carvalho na Direção de Arte, com Akira Goto; Juliana Prysthon e Verônica Julian no Figurino; Gabi Moraes na Maquiagem; Sônia Hamburger na Coordenação Executiva, com Egle Tubelis; e Christiane Riera na Supervisão de Dramaturgia.
Nina já recebeu vários prêmios, entre eles o da Crítica no Festival de Moscou e o de Melhor Direção no Festival de Nova York
Nina, Brasil, 2004. Direção: Heitor Dhalia.