Ano 20

10º Olhar de Cinema - Longas 2

Cena de Deus tem AIDS, de Fábio Leal e Gustavo Vinagre
O 10º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, que começou no dia 6 e vai até o dia 14 abril, segue apresentando programação de filmes, 77, nacionais e internacionais, além de encontros e masterclass.

Na quinta, 7, foi a vez de assistir a dois longas: Capitu e o capítulo (RJ), de Julio Bressane, e Deus tem AIDS (SP), de Fábio Leal e Gustavo Vinagre.

Em Capitu e o capítulo, Julio Bressane visita mais um clássico, dessa vez o universo de Machado de Assis a partir da obra-prima "Dom Casmurro" e os inesquecíveis Capitu e Bentinho.

É chover no molhado, e já redutor, falar sobre o estilo personalíssimo do cineasta, mas realmente não dá para escapar dessa percepção imediata de frente já aos primeiros planos desse seu novo filme. Esteta, Bressane arrebata em planos como as cartolas sob a chuva vistas de cima, assim como em imagens cujo enquadramento faz da plasticidade elaborada a evocação de pinturas vivas. E aqui, a direção de arte, figurinos e fotografia são deslumbrantes.

Em cena, Casmurro, como no livro, narra seu desassossego entravado na alma nos encontros com alto teor de embates entre seu Bentinho e Capitu, personificados em cena por Henrique Diaz, Vladmir Brichita e Mariana Ximenes. Ainda no quadro, também Djin Sganzerla, Saulo Rodrigues, Claudio Mendes e Josie Antello.

Assim como em suas visitas a outros personagens clássicos, como São Jerônimo, Cleópatra, Nietzsche, Lamartine Babo, Oswald Andrade, Antonio Vieira, Mário Reis, o que parece importar sempre para Bressane são os signos que cada um deles propaga e revela.

Capitu e o capítulo é, na verdade, uma revisitação ao universo de Machado, como ele já havia feito em um de seus mais marcantes filmes, Brás Cubas, em 1985, ainda que por outra chave. Aliás, neste novo filme, há uma proliferação de autocitações, com cenas trazidas de seus outros filmes, como Matou a família e foi ao cinema, Tabu, e o próprio Brás Cubas. No entanto, é bom ressaltar que a autocitação aqui nunca parece autorreverenciamento, mas tecitura imbricada de uma obra cinematográfica realmente singular e sugestiva de caminhos abertos para serem desbravados e percorridos.

Todos os atores em cena aparentam estar superdirigidos, como se cada movimento fosse urdido a partir de norte definidor de intenções. E mais tarde, quando a quarta parede se abre e vemos o cineasta conduzindo Brichta para um cena causadora de espanto pela quase canastrice no caminhar ultrajado, essa percepção se acentua ainda mais.

Parceira habitual de Bressane, Josie Antelo parece estar em casa e, talvez por isso, consegue imprimir assinatura própria, ainda que tais linhas sejam bressanianas até a medula. Assim como Djin Sganzerla, que, habitualmente, é sempre senhora de seu corpo e intenções.

Capitu e o capítulo é outro bom momento do cinema de Bressane, e é filme que se acompanha em estado misto de interesse, suspensão contínua, e êxtase.


Deus tem AIDS

Para quem viveu o despertar sexual na década de 1980, como esse escrivinhador, o surgimento e o crescente estabelecimento, e por fim definitivo, da AIDS em nossas vidas, incrustou, para sempre, um novo estado de coisas assustador, castrador e imbuído de solidão, medo e morte.

Para além da avalanche na vida de cada um, as artes foram tateando aquele terreno movediço fatal. E já naquela década e na seguinte, o cinema brasileiro produziu filmes essenciais sobre ou que perpassaram e situaram o tema, como o pioneiro Estou com Aids (1986), de David Cardoso, o inesquecível Romance (1987), de Sergio Bianchi, e o belo e trágico Cinema de Lágrimas (1995), de Nelson Pereira dos Santos.

Dentre outras produções, o mais marcante, outra vez para esse escrivinhador, foi O Olhar Triste (1995), dirigido por Olívio Tavares de Araújo, assistido à época e resenhado tempos depois em especial da Zingu! sobre a Aids no cinema brasileiro, em 2011, quando era editor da saudosa e importante publicação.

Desde 1981 que a AIDS veio para ficar, e desde lá, ainda que se avançou e muito no combate à ela, ela continua ceifando vidas, ainda que cada vez menos falada e tratada por nosso cinema. Daí que assistir a Deus tem AIDS é, por si só, uma experiência impressionante e necessária.

Há muito Gustavo Vinagre se debruça sobre o universo LBTQUI+ abordando vários ângulos e que tem, como ponto mais alto da carreira, o belo Lembro mais dos corvos. Pois em Deus tem AIDS, Vinagre e Fábio Leal realizam um filme indesviável sobre a chamada em seu nascedouro de peste gay, e alçando a obra na carreira do primeiro ao patamar do filme citado.

Impossível não se deixar tomar por completo pela narrativa de Deus tem AIDS, além do fato de o filme reunir tantos personagens incríveis e que dão conta de compor uma geografia tão ampla sobre o tema e sobre a vida. Sim, porque AIDS não tem a ver com a morte, tem a ver com a vida. E ainda mais nesse momento do país em particular, em que a vida vale tão pouco e o genocídio se escancarou oficialmente como política de estado.

Leal e Vinagre conseguem construir um filme que se impõe  na abordagem sobre esse universo, falando de ontem, de hoje, e do amanhã, e sem ficar reféns de seus personagens, que, como já dito, são impressionantes. 

Como não se impactar com cada um deles? Como não se impactar com aquelas falas e aquelas performances? Aliás, uma delas, embedada de sangue  e fúria, é tão forte e tão desafiadora, que a imagem construída permanece na retina mesmo após a mudança de plano e ainda depois do apagar das luzes.

Deus tem AIDS já nasceu clássico.


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Serviço
10º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba
De 7 a 15 de outubro - filmes exibidos e programação completa no 
site olhardecinema. com.br
Ingresso: R$ 5 por filme

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Sala 
 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior