Adrielle Vieira em cena de Blackout (2019), dirigido por Rossandra Leone
A programação do terceiro dia de exibição de curtas do 48o. Festival de Cinema de Gramado, coincidentemente ou não, foi dedicada à produção carioca. Foram exibidos Atordoado, eu permaneço atento (2020), de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos, e Blackout (2019), de Rossandra Leone. Vale ressaltar que o longa da noite, Um animal Amarelo, de Felipe Bragança, também é carioca, fato abordado pelas apresentadoras do Festival Renata Boldrini e Marla Martins
Dos filmes exibidos até agora na programação do Festival, seja no formato curta ou longa, há uma unidade entre eles, que é o olhar, ainda que por diferentes e diversos ângulos, sobre o Brasil. Se o mundo parece ter virado de cabeça para baixo, no caso do Brasil a sensação é que, ora ele foi estilhaçado, ora ele se transformou em um monolito, tamanho e absurdo é o cenário em que vivemos nos dias atuais.
Se por um lado temos um governo maior fascista, o que já é enlouquecedor, por outro temos uma grande parte da população brasileira se reconhecendo nesse modelo, o que é assustador. Daí que seja natural, pelo caráter de ineditismo que os filmes brasileiros precisam ter para concorrer ao Kikito, ou seja produções de agora, iniciadas ou finalizadas em meio a esse pandemônio, que essa urgência esteja colocada.
E se temos no cargo máximo um genocida adepto da tortura, nada mais condizente que um filme como Atordoado, eu permaneço atento seja um dos filmes a compor essa galeria de olhares sobre o país. Vale ressaltar que, ainda que o cenário atual não fosse o de fim do mundo, a temática abordada pelo curta permanece relevante e urgente, pois a ditadura civil-militar e a prática da tortura que ela executou sobre os adversários ao regime é, e será sempre, um crime contra a humanidade. Só que como aquele estado de coisas se tornou atualmente momento celebrado e referenciado oficialmente, o filme se instaura ainda com mais força.
Com duração de 15 minutos, Atordoado, eu permaneço atento traz para a cena o jornalista e militante dos direitos humanos Dermi Azevedo, que enfrentou a ditadura civil-militar das décadas de 1960-1980 e foi perseguido, torturado e exilado. Não bastasse todo vilipêndio que sofreu, assim como inúmeras e inúmeros outros, inclusive mortos e desaparecidos, ele viu seu filho, de menos de dois anos de idade, também ser torturado pelo governo ditatorial.
As marcas e o destino que levou seu filho compõem esse relato de dor em eterna expiação, já que os torturadores brasileiros jamais foram punidos, como também sua perplexidade com os tempos atuais em que se assiste diariamente saudações públicas ao regime e à nefasta e criminosa prática da tortura, inclusive pelo atual presidente dentro do Congresso, quando deputado, e agora na cadeira máxima do país.
Para sua abordagem, o filme faz uso de material de arquivo, fotos e vídeos, além do depoimento de Dermi Azevedo, também em p&b como as imagens. Essa simbiose constrói amálgama dilacerante entre os dois tempos, que, como reflexos sombrios um do outro, compõem assim uma estado de continuidade estarrecedor sobre todo um país e seu povo.
Blackout, curta de 18’51” dirigido por Rossandra Leone, é também sobre a junção de dois tempos, em que esse mesmo estado déspota de violência, extermínio e crimes contra os direitos humanos praticados pelo Estado desde sempre, agora ecoa em trama ambientada em 2048.
Blackout bebe nas referências do cinema de gênero da ficção científica para sua abordagem sobre o confronto entre a polícia e as forças de repressão com suas práticas de extermínio, racismo e machismo e os moradores das periferias, favelas e aglomerados. As referências estão no tempo futuro e no desenvolvimento do aparato que circunda e ambientaliza a trama, sobretudo no cenário asséptico e em elementos tecnológicos como chips.
Uma das particularidades propostas nesse Blackout é que não são brancos do asfalto convertidos em super heróis para salvar a humanidade. Aqui são os próprios sujeitos continuamente exterminados que se insurgem para se salvarem e aos seus na pele da heroína negra, jovem e altiva, interpretada por Adrielle Vieira.
A cineasta Rossandra Leone impõe ritmo a seu filme, ainda que faça construção um tanto manjada na figura do agente da repressão, reforçada pela composição de Marcéu Pierrotti. Adrielle se sai melhor, pois encarna personagem com sangue no olho.
Blackout é filme que também se insere nesse momento aterrador em que o país vive, afinal 2048 está logo ali, só que em vez de abandonar a luta macro para se refugiar no mundo micro, Blackout conclama outra vez à guerra, para, quem sabe, quando chegar lá, ainda termos a possibilidade de um país.
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48o. Festival de Cinema de Gramado
De 17 a 26 de setembro de 2020 - exibições no Canal Brasil e nas redes sociais
Programação completa: festivaldegramado.net