Além do talento inquestionável, Fernanda Montenegro possui um carisma tão gigantesco que em qualquer trabalho que faça, seja no teatro, na TV ou no cinema, a gente já vai ver querendo gostar. E não é diferente no filme O outro lado da rua, primeiro longa de Marcos Bernstein, premiado co-roteirista de Central do Brasil, de Walter Salles.
Em O outro lado da rua, Fernanda Montenegro é Regina, uma mulher aposentada que para fugir da solidão, torna-se, voluntariamente, informante da polícia. Certa noite, Regina vê, pelo binóculo, algo parecido com um assassinato no prédio em frente ao seu. Quando a polícia declara que a morte da mulher de um juiz aposentado teve morte natural, Regina resolve investigar por conta própria e acaba se envolvendo com o suposto assassino, Camargo (Raul Cortez), fato que acarretará mudanças impensáveis para sua vida.
O outro lado da rua é um belo filme outonal. Só que ao invés dos tons dourados que normalmente pontuam títulos desse gênero, o que se vê é a predominância de um tom azul que faz lembrar o cinema do grego Theo Angelopoulos, de Paisagem na neblina. Em entrevista ao Mulheres, Fernanda Montenegro ressaltou que o trabalho da direção deu tempo para os atores se proporem, para os personagens se proporem dentro da história, que foi uma direção larga, sem taquicardia. E isso está claro no filme, o que contribui para a conquista sem pressa do público.
E é preciso que seja dito: Fernanda Montenegro está mesmo, mais uma vez, impecável. Na primeira cena, em que aparece de calça comprida passando batom e seguindo para uma boate, de cara a gente já começa a acreditar na personagem. Não a tôa, vem recebendo novos prêmios, como no Tribeca Film Festival, criado pelo ator Robert De Niro após os atentados de 11 de setembro.
Raul Cortez faz o juiz Camargo. No roteiro, suas chances de brilho são menores que as de Fernanda, mas ainda assim ele demonstra porque é considerado um dos nossos grandes atores. E é bom vê-lo novamente no cinema, já que a memória busca, imediatamente, momentos luminosos do passado, como em O caso dos irmãos naves (1967), de Luis Sérgio Person, ou de poucos anos atrás como em Cinema de lágrimas (1995), de Nelson Pereira dos Santos, e Lavoura arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho.
Uma das cenas mais esperadas do filme é a cena de sexo entre Fernanda e Raul, já que não é muito comum esse tipo de cena com pessoas dessa idade. E também por ser protagonizada por Fernanda Montenegro e Raul Cortez, e ainda por persistir na memória, pelo menos para os cinéfilos, a belíssima cena de sexo outonal entre Miriam Pires e Jofre Soares em Chuvas de verão (1978), um dos melhores filmes de Carlos Diegues. Marcos Bernsteim preferiu uma cena mais recatada, em resolução tomada junto com os atores. O resultado faz uma parte do público rir, como foi quando eles estiveram em Belo Horizonte para o lançamento do filme. Outros, como eu, mesmo sem deixar de relembrar a bela cena de Miriam e Jofre, acha beleza na cena de outros dois gigantes das artes cênicas brasileiras, e gosta não só dela, mas de tudo o que o filme propõe.
Como o que pode se modificar, tanto dentro como fora, quando se vê a vida pelos olhos da solidão e da instauração do vazio. Como as escolhas podem vir, de ordem diferente do pretendido, quando se configuram como tapa-buracos de um fundo sem fundo. Como é sempre belo também ver a grande Laura Cardoso dando dignidade em qualquer aparição. Como é bom ver um primeiro filme de um cineasta que aposta na contramão da ordem atual, que é a da correria sem tempo sequer para um abraço com um tempo de abraço, como nos filmes de Theo Angelopoulos. E sem taquicardia.
Além das presenças de Fernanda Montenegro e Laura Cardoso, O outro lado da rua conta com Kátia Machado na Produção (junto com Bernstein); Mariza Figueiredo na Produção Executiva, Melanie Dimantas no Roteiro (junto com Bernstein), Bia Junqueira na Direção de Arte; Cristina Kangussu no Figurino.
O outro lado da rua, Brasil, 2003, 1h47. Direção: Marcos Bernstein.